As diversas faces da violência

08 de julho de 2023, 09:29



Texto de autoria de Juliana Cardoso Ribeiro*

 

Pensando e pesquisando sobre o que eu poderia escrever de relevante hoje, e observando as sociedades no mundo e os problemas que enfrentamos atualmente, dei-me conta de que a violência abrange muitos espaços da nossa vida em sociedade. Seja de uma forma moral, por meio de palavras ou insultos, tal como nos crimes de calúnia, difamação ou injúria; seja de forma física, como nos casos de lesão corporal, homicídio, terrorismo, etc; ou de forma psicológica ou simbólica, a violência ronda a nossa porta constantemente. Lemos ou assistimos aos noticiários e logo nos damos conta de ações violentas produzidas pelo homem. Uma olhadinha rápida no mundo e na história do mundo e percebemos o quão presente está a violência em nossas vidas hoje e o quão profundamente fez parte da nossa história. Neste texto, portanto, pretendo refletir sobre a presença da violência nas sociedades, sem contudo, ter a intenção de esgotar o assunto, até mesmo em razão de sua complexidade e profundidade. Seria impossível, aliás, exauri-lo neste artigo. No entanto, deixarei aqui algumas pistas e reflexões, com o intuito de instigar o leitor a também refletir e quem sabe, se aprofundar mais sobre esta questão.

Em razão da sua ambiguidade, o conceito de violência é heterogêneo e varia conforme a pessoa, o país, o contexto, a cultura, entre outras circunstâncias. Muito embora a Organização Mundial de Saúde a tenha definido, penso que esta definição seja um pouco limitada e não abrange todos os contextos de violência. No entanto, podemos começar a nossa reflexão a partir dela, em razão da existência de elementos básicos em seu conteúdo. Deste modo, a descrevemos aqui, como um ponto de partida da nossa reflexão. Assim a Organização Mundial de Saúde entende a violência:

“O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.” (OMS, 1996)

A violência é, então, uma força física ou de poder e pode ser real ou em ameaça. Neste aspecto, eu acrescentaria também a violência simbólica, um conceito criado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, segundo o qual os indivíduos, por meio de um poder simbólico, se vêem induzidos a terem determinados comportamentos na sociedade, que seguem critérios impostos pelos grupos dominantes. Assim, referidos indivíduos, face a estas forças simbólicas, não possuem outra escolha, a não ser ceder ao que é ditado por estes grupos dominantes, tais como a sua identidade, estilo de vida, vestuário, pronúncia, etc (Bourdieu,1989). A violência simbólica é impregnada de forma tão sutil na sociedade, que as próprias vítimas acabam por endossar o poder do seu agressor, sem perceber. A violência simbólica pode ferir os indivíduos profundamente em sua alma. Marcados por estigmas ou alvos de crenças inconcebíveis, impostas por um poder simbólico dominante , os indivíduos vítimas destas violências, sofrem bastante.

Saliente-se que as características do conceito de violência, vão sempre variar e modificar no tempo e no espaço, conforme determinado por meio dos padrões culturais e de cada momento histórico de cada grupo ou sociedade. 

Assim, voltando a nossa viagem histórica sobre a presença da violência no mundo, é importante lembrar, que desde a antiguidade, a história do homem foi sempre coberta de episódios marcados pela violência. A civilização egípcia, por exemplo, caracterizou-se pela escravidão de outros povos, exploração e castigos físicos, e pela divisão de sua sociedade em classes, onde o Faraó tinha o poder absoluto e ocupava a primeira posição da pirâmide, enquanto os camponeses e os escravos, mantidos na última posição, tinham que se contentar apenas com o necessário para a sua sobrevivência ou com quase nada. Até mesmo a civilização Grega, famosa por seus grandes filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles, pelo teatro e pelo surgimento do conceito de cidadania, foi marcada por guerras e violências, especialmente entre as suas cidades-estados, sendo o período das trevas um dos mais difíceis para aquela civilização, naquele ínterim marcada pela fome e pelas difíceis condições de vida. 

E desta maneira, foi seguindo a humanidade, por meio de guerras e conquistas. A civilização Romana, da mesma forma, famosa por seus domínios e por grandes invasões, foi também caracterizada por suas penas, aplicadas como uma manifestação de poder do governante, e utilizadas como espetáculos para observação de toda a população, tanto por meio de crucificações (lembremos aqui a crucificação de Jesus Cristo), como por lutas e outras formas de castigos abertamente realizadas nos coliseus para “entretenimento” desta mesma população. 

A violência naquela época era mesmo banalizada e explícita e continuou pelos séculos subsequentes. Seguiu-se, então, a idade média, repleta de guerras religiosas, como “As cruzadas”, na época chamadas de guerras Santas e caracterizadas pela tentativa da retomada da “Terra Santa”, sendo este período marcado pela morte de várias pessoas, inclusive crianças. A idade moderna, por sua vez, apesar de se distinguir por ser um período de grandes transformações na Europa, também seguiu as características de violência marcadas por conquistas e, especialmente pela opressão dos mais pobres pelos governos absolutistas da época. Foi neste período também que começou toda a história do colonialismo nas américas, que se seguiu da dizimação de povos indígenas e pela escravização e Tráfico de povos da África, iniciando-se um novo ciclo de violência.

Já recentemente, no século XX, o mundo se deparou com a morte de 6 milhões de judeus e cerca de 250 a 500 mil ciganos na 2ª Guerra mundial, num ato de violência baseado na idéia de limpeza racial, implementada por Hitler, que baseava o seu ato em Teorias científicas da época, as quais colocavam a raça ariana acima de todas as outras. 

Eu poderia ficar aqui relatando mais e mais histórias de violência que marcaram o nosso percurso, mas creio que esta pequena descrição da história, já foi o suficiente para mostrar o caminho de violência que nos acompanha até hoje. Sim! Mudamos de forma, mas a violência existe e muito, na atualidade, e não creio que tenha diminuído, apenas modificou a roupagem. Um ser humano hoje, a depender de em qual continente more, pode ter menos chances de morrer em virtude de guerras, mas está sujeito e exposto a muitas outras formas de violência, as quais surgiram e existem, seja em sua forma física (violência urbana, por exemplo), seja de forma escondida e simbólica. 

A violência assola a humanidade e resulta ainda na morte de diversas pessoas no mundo, sendo uma das principais causas de morte do globo terrestre. Segundo artigo da Folha de São Paulo, existem atualmente 28 Guerras ativas no mundo (Folha de são Paulo, 2022). Pois é! As guerras ainda acontecem, inclusive em solo Europeu. Quantas pessoas estão morrendo agora na Ucrânia, por exemplo? A Guerra civil na Síria,  Iêmen e Etiópia são também exemplos de guerras mais recentes (CNN Brasil, 2022). Vale ressaltar, que em virtude destas violências, milhares de refugiados lutam para chegar em outros países e deparam-se com outros tipos de violência pelo caminho, a começar pelos agenciadores da viagem, que se aproveitam das situações precárias e de desespero daqueles que fogem, fato que é seguido pela discriminação, racismo, xenofobia, violências sexuais, e outras violências que se apresentam de forma flagrante ou sutil, durante o percurso ou já no país de acolhimento. O que falar, então, sobre a violência cometida pelos Estados que se recusam a receber pessoas que correm de um destes cenários de horror? Não é também uma violência?

Para além da violência física, existem outros tipos de violência que se tornaram mais comuns na atualidade, como por exemplo, a violência simbólica, sobre a qual me referi acima, a violência provocada pelo racismo, homofobia e a presença da segregação de classes. Este último tipo de violência é fortemente existente, em virtude de atributos relativos à etnia, nacionalidade, religião, e em relação às pessoas menos abastadas, as quais vivem, por vezes, nas favelas das grandes cidades (como no Brasil) ou em guetos, tal como acontece em vários outros países, inclusive desenvolvidos e com alto índice de IDH. A consequência desta exclusão culmina no aumento da violência urbana e de formação de gangues em muitos lugares, incluindo Brasil, Estados Unidos, França, Holanda, Inglaterra, Suécia e outros país. No caso dos países Europeus, são também confinados nestes projetos, vários imigrantes com baixas condições financeiras, os quais, face à inexistência de políticas públicas de acolhimento efetivas, envolvem-se na criminalidade e violência, por meio de vários tipos de crime, inclusive o tráfico de drogas. 

A violência contra a mulher também continua a ter “ibope” na atualidade e se manifesta de forma sexual, física, psicológica e simbólica, em vários setores da sociedade, incluindo o ambiente doméstico. A violência sexual, da mesma forma, continua a existir na sociedade “civilizada” e na “barbárie” das guerras, as quais ainda não cessaram, consoante mencionei anteriormente. Várias pessoas são abusadas na época atual, sendo muitas, inclusive, vítimas de tráfico de pessoas, também para este fim. No continente Africano, a violência econômica massacra vários países, e em outro, pessoas e crianças morrem de fome e por falta de condições básicas de vida ou possuem suas infâncias roubadas e são vítimas de conflitos armados.

A história e a atualidade nos mostram, desta maneira, a presença constante da violência em todas as sociedades. Agimos constantemente sem qualquer empatia com os sentimentos intrínsecos do outro que sofre ao nosso lado. Fechamos os olhos para as violências flagrantes, simbólicas ou sutis que cortam a pele do outro como navalha, e vivemos as nossas vidas sem nos padecermos com as outras dores. Importamo-nos extremamente com o que a sociedade nos dita, sem analisarmos as suas entrelinhas e as verdadeiras intenções maléficas que correm por trás destas imposições sociais. Que importa a cor da pele? Que importa verdadeiramente a roupa que vestimos? Ou o sotaque que temos? Ou a nossa condição sexual? Ou de onde somos? E por que tanta busca desenfreada pelo poder? Para onde vai tanta opressão? Não somos nós tão fugazes nesta vida breve? Não temos nós o mesmo destino nesta vida, afinal? Parece que somos mesmo maus em nosso âmago. É o que a história demonstra. Descrevo, mais uma vez, pela relevância deste pensamento, as palavras de Plautus, o qual outrora mencionei em outro artigo: Homo homini lupus, “O homem é o lobo do homem”. Pensemos nisso! Tentemos ser melhores!

 

Fontes e Referências:

BOURDIEU, Pierre (1989), O Poder Simbólico, Rio de janeiro, Editora Bertrand Brasil S.A.

CNN BRASIL (2022), “Além de Rússia e Ucrânia: Saiba quais são as outras guerras ativas no mundo”, publicado em 21 de março de 2022.

FOLHA DE SÃO PAULO (2022), “Além da crise na Ucrânia, o mundo tem 28 conflitos ativos e teme novas guerras”, 16 de fevereiro de 2022.

 

Foto:

NEOSiAM 2021: https://www.pexels.com/pt-br/foto/punho-esquerdo-635356/  

 

*Juliana Cardoso Ribeiro é Doutora em Sociologia pela Universidade do Porto (Portugal), Mestre em Estudos Europeus pela Universidade do Minho (Portugal) e graduada em direito pela Universidade Federal de Sergipe. É a idealizadora e criadora do Terraço da Gente, membro colaborador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Portugal) e membro integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Cultura e Consumo.

 

 





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