Beatriz Nascimento e as histórias interrompidas de mulheres negras
Texto de autoria de Leandro Regis Nascimento da Silva**
Maria Beatriz do Nascimento nasceu no dia 17 de julho de 1942 em Sergipe e foi assassinada em 28 de Janeiro de 1998 no Rio de Janeiro. Historiadora, poeta, professora, acadêmica (cursava mestrado em comunicação social quando foi morta), feminista, ativista dos direitos humanos dos homens e mulheres negros e negras, militante do movimento negro e dos direitos dos quilombolas, ela deixou um legado politico e intelectual diverso e um pensamento critico que influencia até hoje o campo de estudos sobre as relações raciais e afro-brasileiras (1). Neste mês de julho de 2022, se estivesse viva ela faria 70 anos. Ela foi assassinada pelo marido de uma amiga, uma vez que Beatriz encorajava a deixá-lo em virtude de violência doméstica. Vítima do que então chamamos hoje de feminicídio.
No dia 27 de julho de 2022, a socióloga, militante dos direitos LGBTQIA+, feminista e vereadora Marielle Franco faria 43 anos se não tivesse sido brutalmente assassinada em 14 de março de 2018 tendo, assim como Beatriz Nascimento, uma brilhante carreira e história de luta, principalmente da luta interseccional, sendo interrompida pela violência e pelo ódio que o sistema patriarcal, sexista e misógino promove contra nossas mulheres. Cabe lembrar que “se a ‘questão feminina’ é tão ‘absurda’ é porque a arrogância masculina fez dela uma querela’’(Beauvoir, 1949, p.31) .
Mas o que as histórias dessas duas mulheres têm a mais em comum ? A resposta é (nada) simples : uma história marcada pela luta de mulheres, nesse caso negras, contra a violência sexista e/ou de gênero, a discriminação, o racismo, o patriarcado, a opressão, a misoginia, etc. Dois percursos distintos em termos cronológicos, mas totalmente similares em termos políticos, e que nos deixam reflexões sobre as lutas e resistências no nosso cotidiano em tempos de ódio exacerbado, e principalmente : reflexões sobre a vida de tantas outras mulheres (brancas ou negras) e as opressões que sofrem no Brasil nosso de cada dia.
A obra de Beatriz Nascimento e o percurso, sobretudo político, de Marielle Franco nos mostram a importância do protagonismo negro na luta contra a opressão. Isso me faz pensar no quanto é primordial que homens leiam obras escritas por mulheres, que mulheres brancas leiam obras escritas por mulheres negras,e que leiamos juntos toda essa produção visando uma luta interseccional, com a máxima participação de todos e todas.
Mulheres engajadas pelo comprometimento com a decolonização do pensamento e com o militantismo político antirracista. Através da critica social, sendo possível somente com nosso entendimento sobre o que é (ou são) as intelectualidades, as relações raciais, de gênero, de classe, o lugar (de fala) da mulher negra ( e do homem também..), as dominadoras e dominantes masculinidades em crise, o racismo e machismo estruturais, etc., E como tudo isso é produzido e conduzido pelo sistema ideológico e político do nosso Brasil. Ora, Angela Davis (1981) tem razão quando diz que quando uma mulher negra se movimenta, toda uma estrutura da sociedade se movimenta com ela.
Precisamos nunca esquecer e sempre lembrar que inúmeras mulheres sofrem violência sexual, doméstica, obstétrica, e são assassinadas pelos companheiros, e que tornam-se somente estatísticas, caindo na impessoalidade dos números. De acordo com o Atlas da Violência de 2021, 66% de mulheres assassinadas no Brasil são negras, e que para “cada não negra morta, morrem 1,7 negras assassinadas”(2).
Enquanto mulheres seguirem sendo assassinadas, nenhuma mulher será emancipada (RIBEIRO, 2018). Ivan Jablonka (2019: p.263) questiona : “ cada homem pode estar se perguntando ‘o que que é que eu tenho a ver com essas violências?’. Se, aparentemente, eles não têm nada a ver com elas – com nenhuma delas – então é seu (nosso) dever de se manifestar a fim de combatê-las’’. Essas pessoas não são números, elas são a “história viva do preto e da preta (2021,p.45)”. E que vivam !
Neste mês no qual comemoramos o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (25 de julho), no qual comemoraríamos os 70 anos de Beatriz e os 43 de Marielle, por um feminismo afro-latino-americano, em alusão à Lélia Gonzales (2020), enfrentar o racismo e o machismo estruturais, a violência e o ódio, passa pela necessidade de dar visibilidade à memória e o legado dessas mulheres e todas as outras ! E que elas não sejam nunca mera estatísticas !
E que todas as anônimas vítimas de feminicídio sejam para sempre lembradas e jamais apagadas. E se não pudermos evitar a morte de mais mulheres e/ou crianças, que nosso engajamento seja na luta para que essas mortes sejam (ou tenham sido) as últimas.
(1) A minha referência principal para a construção desse paragrafo é baseada na coletânea de textos de Beatriz Nascimento organizada pelo antropólogo Alex Ratts.
(2) Consultar no Altas da violência disponível em < Ipea - Atlas da Violencia v.2.7 - Atlas da Violência 2021 > e no site de notícias < Atlas da Violência: 66% das mulheres assassinadas no país são negras (uol.com.br)>.
Bibliografia indicativa
ATLAS, da violência. Atlas da Violência: 66% das mulheres assassinadas no país são negras.Violência contra a mulher. Disponível em < Atlas da Violência: 66% das mulheres assassinadas no país são negras (uol.com.br)> Consultado em : 27 de julho de 2022.
DAVIS, Angela. Femmes, race et classe. Des femmes-Antoinette Fouque, Paris, [1981] 2020.
BEAUVOIR, Simone de. Le deuxième sexe : les faits et les mythes, (tome I), Paris, Gallimard, 1949.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar, Rio de Janeiro, 2020.
JABLONKA, Ivan. Des hommes justes : du patriarcat aux nouvelles masculinités. Seuil, Paris, 2019.
RATTS, Alex. Uma história feita por mãos negras. Beatriz Nascimento. Zahar, Rio de Janeiro, 2021.
RIBEIRO Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? Companhia das letras, São Paulo, 2018.
*Desenho/Imagem: Juliana Ribeiro
**Leandro é doutorando em Antropologia Cultural pela Universidade de Coimbra (Portugal), graduado em relações internacionais pela Faculdade Integrada do Recife e possui Mestrado em Antropologia e Etnologia Social pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris. É Membro do Grupo de Estudos sobre Diversidade Religiosa e Intolerância (GEDRI) pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e faz parte do grupo de pesquisa sobre Corpo, Cultura e Consumo, da Universidade Federal de Goiás (UFG).
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