Das Sombras à Conexão ou Da Conexão às Sombras ou Quando Dei Meu Primeiro Suspiro
Crônica de autoria de João Dantas**
Setembro/2023
Quando dei meu primeiro suspiro na cidade de Salvador, já era noite. Uma noite que se estendia como um véu escuro sobre os becos sinuosos, ruas íngremes e imponentes morros. Era uma época marcada pela sombra da ditadura militar, onde o silêncio, por vezes, era a única forma de sobreviver. Naquela Salvador de outrora, a noite possuía segredos profundos, como se a escuridão fosse tecida com histórias não proferidas.
No entanto, assim como o tempo não conhece estagnação, o dia inevitavelmente surgiu. A escuridão começou a ceder terreno, gradualmente dando espaço à luz. Foi uma transição sutil. As ruas outrora vazias começaram a encher-se de vida à medida que os primeiros raios de sol tocavam a cidade. O silêncio foi rompido pelo ruído suave dos passos das pessoas, pelos cumprimentos matinais e pelos mercados ganhando vida.
E então, como uma tempestade iminente, os automóveis entraram em cena. Eram os cavalos de metal da era moderna, trazendo consigo a agitação das ruas e a promessa de uma vida mais veloz. As estradas tranquilas transformaram-se em rios de aço e fumaça, conectando a cidade de maneiras nunca antes imaginadas. Com a chegada dos automóveis, a cidade expandiu-se para além de seus limites visíveis, abraçando novas possibilidades e horizontes.
No meio dessa cena de transformações, a televisão, outrora o principal meio de entretenimento e informação, também se reinventou. Das sombras do passado, emergiu como um veículo de conexão global. Programas transmitidos via satélite alcançavam lares ao redor do mundo, criando uma comunidade global de telespectadores. A televisão, que um dia refletia a realidade em preto e branco, agora irradiava cores vivas e informações instantâneas.
No entanto, as mudanças não se limitaram às estradas de asfalto e às telas de LED. A ascensão dos computadores trouxe consigo uma nova revolução, uma que ocorria nos bastidores, nos fluxos invisíveis de dados. A cidade ganhou um coração digital, batendo com a promessa de uma era de informações e conectividade. Aos poucos, os becos escuros deram espaço para os pixels brilhantes das telas, e a noite passou a ser iluminada por uma luz diferente:
Com a internet vieram as redes sociais, uma teia de relações que se estendia virtualmente por todo o planeta. A cidade que um dia conheceu o silêncio agora ecoava com conversas digitais, curtidas, compartilhamentos e hashtags. O mundo inteiro estava a apenas um clique de distância. A intensidade da conexão constante, a pressão das aparências online, tudo isso deixou marcas nas almas antes humanas.
E assim chegamos a 2023, em Goiânia, um ano em que a linha entre a realidade física e a virtual tornou-se ainda mais tênue. A história se desenrola dentro de um carro, um espaço que antes representava liberdade e mobilidade. No entanto, esse carro agora se transformou em um palco para os dramas internos de um jovem. O colapso, numa crise de pânico, é a manifestação do peso de uma vida em constante conexão, uma vida onde a escuridão da noite já não traz consigo o silêncio. Afinal, mesmo em meio ao turbilhão, todos nós somos apenas viajantes em busca de um lugar de calma no meio do caos luminoso.
*Ilustração: The beginnings of a Smile - Paul Klee - Domínio Público
**João Dantas é doutor em Antropologia e professor da Universidade Federal de Goiás. E-mail: joaodantas@ufg.br / Instagram: @joaodantasanjos
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