Será que quem passa nas ruas sabe que habitam pessoas nas casas por lá? E será mesmo que alguém ainda mora, de fato, por lá?
Texto de autoria de Juliana Cardoso Ribeiro**
Recentemente viajei e da minha janela vi muitas pessoas passarem para lá e para cá. Cheios de alegria e de uma nova euforia de quem vai de férias para algum novo lugar, sem se importarem com as falas e os seus volumes. Logo abaixo do apartamento onde fiquei, havia várias lojinhas com pequenas lembranças para turistas e outros tipos de coisas que a gente compra por aí.
Em um momento inicial, tudo isso pode parecer bem interessante. Ficar hospedada no coração da cidade, onde os transeuntes passam, conversam e perto de tudo o que se quer alcançar em alguns dias. No meu caso, foram 30 dias. Não foi tão curto prazo assim.
As portas altas e grandes do apartamento, muito antigas, nunca foram trocadas e não tinham um bom isolamento. Os vidros que as compunham não eram duplos. Era possível ouvir mesmo todo o barulho da rua, que se repetiu diariamente, durante os dias em que lá estivemos.
Não dava para fechá-las sem ligar o ar-condicionado, que também não funcionava bem. Aliás, tivemos o cuidado de procurar no site, um apartamento com ar-condicionado e alta pontuação, para que não pudéssemos mesmo sofrer muito com o calor infernal que tem atingido a Europa. Não foi um apartamento barato.
Quando chegamos ao apartamento, descobrimos que havia apenas um ar-condicionado na casa, localizado na sala, com funcionamento muito duvidoso. A casa possuía dois quartos, que tinham supostos ares-condicionados portáteis, com uma tubulação de ar conectada diretamente da rua. Quando o ligávamos, para além de não refrigerar o ambiente como esperávamos, tínhamos que lidar com toda a poeira vinda de fora.
Ainda não entendi bem sobre o funcionamento destes ares-condicionados. Sequer descobri se eles vêm assim mesmo de fábrica ou se foi uma invenção da nossa anfitriã.
Ficamos então com muito calor, em meio a um barulho infernal que vinha de fora do apartamento. Optamos por fechar as portas muitas vezes, mas abríamos no final da tarde, em dias que mentalmente podíamos suportar o burburinho da cidade. Decidimos assim, para agradarmos a anfitriã que nos sugeriu desligarmos o ar-condicionado quando não estivéssemos em casa. O problema é que fiquei muitos dias em casa para escrever e trabalhar. Assim, pensamos nela.
De qualquer forma, se não abríssemos as portas em uma determinada hora, como o ar-condicionado não funcionava bem, o calor invadia o apartamento, mesmo com o ar-condicionado ligado. Era preferível, então, deixarmos as portas abertas por algum tempo, para evitarmos o calor. Estes eram momentos em que todos nos assistiam da rua. Um Big Brother real.
A anfitriã também disse que não era preciso utilizar o “ar-condicionado” no quarto. Bastava o ventilador de teto. Não gostei muito disso, afinal 38 graus não é uma temperatura muito agradável, mas não é a primeira vez que ouvia isso por lá.
Do banheiro, com ou sem ar-condicionado, ouvíamos claramente guias turísticos a todo o momento. A impressão era de que todos me assistiam, enquanto eu tentava me equilibrar em uma banheira mortal. Nunca tinha me deparado com uma banheira daquela.
Estivemos em apuros todos estes dias de nossa estadia. Dias de cão, eu diria. Consegui imaginar-me morando naquele local e o sofrimento vindo destes pensamentos foi ainda maior. Questionei-me, então, se os transeuntes que passavam naquelas ruas sabiam que moram pessoas por ali. Aliás, perguntei-me várias vezes, se alguma pessoa daquela cidade morava, de fato, nos arredores. Quando se está em apartamentos assim, é possível ouvir as conversas de todos os tipos, inclusive as mais íntimas, que parece, as pessoas não se importavam em compartilhar.
É bom refletir sobre o barulho e a indiscrição dos olhares para dentro das casas, de uma curiosidade mórbida e mal-educada de quem pensa somente em si e em seus anseios, sem se importarem com o cotidiano alheio.
Este é um problema de muitas cidades Europeias. Muitas pessoas locais precisam deixar suas casas, onde viveram anos e anos no centro da cidade ou em locais que se tornaram turísticos, para que as cidades possam receber mais e mais pessoas, em uma loucura desenfreada e quase caos. Aqueles que restam na cidade, se é que restaram, precisam se adequar às novas estruturas, novos modus operandi de vida naquele espaço, que pouco a pouco vai perdendo seu brilho original, em prol de aparências e ritmos globalizados.
Gosto das coisas mais simples e de poder andar nas cidades e conhecer o que há de verdade nelas, sem a loucura de desestabilizar as vidas que sempre habitaram e precisam viver por lá. Fiquei a pensar, em meio a esta confusão, se há de haver um meio-termo, uma solução equilibrada para este paradoxo entre a qualidade de vida e calmaria versus a agitação e fluxo de viajantes deste novo tempo, mundo globalizado.
* Fotografia de Danique Veldhuis
**Juliana Cardoso Ribeiro é Doutora em Sociologia pela Universidade do Porto (Portugal), Mestre em Estudos Europeus pela Universidade do Minho (Portugal) e graduada em direito pela Universidade Federal de Sergipe (Brasil). É a idealizadora e criadora do Terraço da Gente.
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